sábado, 4 de setembro de 2021

1 – Introdução

Era uma vez... Era uma vez... Era uma vez...

É em termos de era uma vez que Saramago apresenta o seu Memorial do Convento na contracapa. E já no início colocara uma citação de Marguerite Yourcenar a relativizar o teor de muitas afirmações que todos fazem - e ele também. Não é porém assim que os alunos e sem dúvida muitos professores lêem o romance. Aliás aceitam que memorial é uma palavra que se presta pouco a meias verdades; e estão habituados ao carácter tão assertivo do autor que aquilo não lhes parece para tomar a sério.
Por isso, este trabalho, feito numa acção de formação sobre esta obra, tem indubitavelmente sentido. Alunos e professores desconhecem no geral a verdade histórica dos factos que nele são romanceados, o contexto histórico a ele subjacente.

Na história da nossa crítica literária há alguns casos muito notáveis de sobreavaliações: foram sobreavaliados pelos seus contemporâneos o poeta João de Deus (Antero de Quental aproximou-o de Camões), Guerra Junqueiro (segundo J. do P. Coelho, nenhum dos escritores da sua geração “gozou em vida duma reputação tão espectacular”) e outros do mesmo século XIX; houve também muitas avaliações erradas no século XX.

Quer isto dizer que, em relação a Saramago, não temos que estar prisioneiros de apreciações tão entusiastas como vulgarmente se vêem. Até já houve o caso de um prémio Nobel português cuja atribuição se revelou um erro.

Há algum tempo os alunos do 12.º ano tiveram de comentar no exame esta original opinião de Óscar Lopes: “Memorial do Convento […] traça do século XVIII uma visão extraordinária”.

Mas se o romance se ocupa só de cerca dum quarto de século, como há-de dar a visão do século todo? Depois de D. João V não houve o Marquês de Pombal?![1] E depois não vieram D. Maria e a viradeira?! É tudo o mesmo? Além do mais, distorcendo esta narrativa ficcional a verdade histórica em aspectos marcantes, onde pode estar o carácter extraordinário dessa visão? Extraordinário é que se possa fazer uma afirmação como a transcrita.

Isto justifica um cuidado crítico muito grande ao lidar com o Memorial do Convento.


Chacota, sarcasmo e hipérbole

A nossa ignorância acerca dos hábitos lisboetas e cortesãos do séc. XVIII é sem dúvida muito favorável a José Saramago: é fácil tomarmos à letra as suas caricaturas, os seus sarcasmos, as suas hipérboles, a sua chacota.

Se os conhecêssemos, provavelmente discordaríamos de muitas das afirmações que faz, que ficariam reduzidas a uma perspectiva pessoal de hipérbole e caricatura.

Magnífica fachada do Convento de Mafra

A blasfémia

O leitor católico do romance não pode evitar de se sentir enojado com a facilidade com que o autor troça das verdades da sua fé: as blasfémias estão a cada passo. Dizer por exemplo que da Basílica de S. Pedro que é “quase tão grande como Deus” ou que “Deus é maneta” é dizer contrassensos que ninguém pode tomar a sério.

Para atacar o Cristianismo a partir de dentro, o autor faz alarde de conhecimentos litúrgicos, bíblicos, teológicos e históricos (agiológicos, em concreto) que o leitor comum ignora.

Nenhuma pessoa de bom senso porém reconhece o Cristianismo nas frases do romance[2].

Qual será o conceito de Deus para Saramago? Um Deus tão pequeno e “maneta” nunca poderia ser o Criador do Homem, do Universo e das suas maravilhas. Dele, a ninguém ocorreria falar assim.

O sarcasmo no Memorial do Convento penso que assenta em quatro aspectos principais que merecem análise histórica: a Lisboa barroca, a denúncia da Inquisição, o Pe. Bartolomeu de Gusmão e a construção do Convento.

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[1] Só a reconstrução da baixa pombalina que mudanças trouxe a Lisboa! À Lisboa árabe e gótica, de ruas sinuosas e estreitas, pontuada por capelas e igrejas, sucedeu uma cidade de linhas rectilíneas e largas, moderna, pensada em acordo com parâmetros europeus.

[2] Leia-se esta breve citação de Rui Osório, sacerdote e jornalista do Jornal de Notícias, em comentário ao blogue de Saramago:

“Sobre o Corpo de Deus, José Saramago, afoitamente, admitia que a temática religiosa, quando a aborda, é "para fáceis heresias, como costumam ser as minhas, segundo canónicas e abalizadas opiniões". (…)

São considerações de adolescente serôdio, a quem a cultura religiosa ficou tão curta como a roupa da sua infância. Saramago tem objecções típicas de um adolescente retardado que supostamente cresceu na cultura mas ficou infantilizado em religião!”


2 – Temas para desenvolvimento



2.1 – A Lisboa barroca e D. João V


Sobretudo nas páginas iniciais do romance, Saramago faz a caricatura de Lisboa, no pior da sua face absolutista e barroca Pós-Restauração. A cidade não era certamente assim, mas o país, esse era diferente. Os documentos contemporâneos negam tal imagem. As pessoas que os escreveram não eram loucas, com toda a segurança não padeciam daquela paranóia geral[1].

E isto é importante que se diga, porque elas eram tão inteligentes como as de hoje, como Saramago e nós.

Quando ele diz de Lisboa que era uma pocilga (… “este corpo parco e porco da pocilga que é Lisboa”, cap. III), convém saber que até nos concelhos rurais havia exigências de asseio com os caminhos[2]. Em Lisboa não haveria qualquer exigência prática de asseio nas ruas? Atolar-se-iam todos na lama e na imundície?



 Retrato do jovem D. João V.


Ao lado da imundície física, depreende-se da narrativa que alastrava na cidade uma podridão moral funda e geral. Nem Fernão Lopes, nem Gil Vicente, nem o Pe. António Vieira, nem Bocage, nem Eça de Queirós, nem Fernando Pessoa tinham visto a cidade assim.

N’Os Maias, Eça apressava-se a chamar beata a qualquer mulher honesta[3]; Saramago vai mais longe: não há beatas nem honestas, só devassas… E devassos. Vista de lince. Ou talvez melhor: “cada um fala da feira conforme lhe vai nela”.

Num conhecido prefácio ao Amor de Perdição, Camilo, contra os realistas, fala num certo pudor em penetrar dentro das alcovas. O materialista Saramago não se tolhe com essas limitações; entra nas alcovas, vê os corpos, os gestos, os líquidos, numa impertinência e indiscrição devassadoras e maniqueias, a duas cores: nuns casos só há coisas apreciáveis, noutros só detestáveis.

Mas é nessa estrumeira de Lisboa que, por obra de Saramago, medra a bela e inesperada flor que é a virginal Blimunda, que aliás, insensatamente, se entrega a um homem de quem apenas sabe o nome[4].


D. João V, “um dos maiores reis da História portuguesa”

A perspectiva tão negativa que Saramago dá de D. João V no romance está muito longe de colher a unanimidade dos historiadores.

Segundo a História de Portugal de Joaquim Veríssimo Serrão, “(…) não pode hoje manter-se a concepção do rei (D. João V) esbanjador de riquezas, como ainda por vezes se encara esse período de governo; nem tão-pouco a do rei «freirático», passando o tempo em conventos, dado a orgias e a uma vida afastada do ofício de reinar. (…)

O visconde de Santarém traçou este juízo modelar: «Quaisquer que sejam os defeitos que se possam notar neste Príncipe como homem, estes não pertencem à história, à qual só compete examinar as acções públicas e não os actos da vida privada, demais que não foram eles de tamanha gravidade, nem influíram na direcção dos negócios públicos». (…)

A posição cimeira que ocupou na política europeia do tempo; o culto pessoal como meio de fortalecer os direitos da coroa; os cuidados postos na administração ultramarina, adivinhando sobretudo o crescente potencial do Brasil; a obra de cultura e o mecenato das Letras e Belas-Artes a que ligou o nome – tudo concorre para fazer de D. João V um dos maiores reis da História portuguesa.”[5]

Este modo de avaliar D. João V difere pouco do que se pode ler na Enciclopédia Verbo; o artigo que lá vem é um louvor quase continuado ao Magnânimo.

Se nem todos o avaliam assim, reconheça-se ao menos que a excelência artística do Convento de Mafra muito lhe deve.




 D. Maria Ana de Áustria.


Convém reter que, se até ao voto de erguer o Convento o Magnânimo não conseguira ter filhos da rainha D. Maria Ana de Áustria, depois teve vários, o que dá força à afirmação do carácter miraculoso do nascimento do primeiro. Esta rainha era uma mulher culta, que sabia, além do alemão e do português, francês, italiano, espanhol e latim. Entre a realidade histórica e a chacota de que é alvo no romance deve mediar um abismo.

A filha mais velha do casal, Dona Maria Bárbara de Bragança, foi uma excelente rainha de Espanha, “discreta e eficaz”.

“A jovem princesa das Astúrias era uma mulher culta, agradável, fluente em seis línguas e grande amante das Belas-artes, em especial a música. D. Maria Bárbara e D. Fernando eram realmente apaixonados um pelo outro”.

“Sabe-se que até a própria D. Maria Bárbara compôs sonatas para uma grande orquestra”.

“Sua morte provocou a loucura de Fernando VI, que morreu no ano seguinte”. Wikipédia



D. Maria Bárbara de Bragança, a culta filha de D. João V que fez um casamento de inteiro sucesso: o marido enlouqueceu quando ela morreu.

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[1] Conhecemos centenas de documentos do séc. XVIII, dezenas deles da sua primeira parte.

[2]Veja-se este “costume antigo” do regimento dum concelho rural, passado a escrito em 1743:

“É costume muito antigo fazerem toda a justiça deste couto Juiz, Verea­dores e Procurador e mais oficiais com o escrivão. Fazerem duas correições todos juntos, cada uns em seu ano, a saber, uma em Janeiro e outra em o mês de Maio, ver caminhos e tapagens e vergas das veigas, como também as vendas, açougue e moendas, para que tudo esteja capaz e bem asseado (…)”. Títulos e Acórdãos do Couto e Honra de Fralães, Arquivo Municipal de Barcelos.

Os juízes destes concelhos acumulavam às competências judiciais as competências dos actuais presidentes da câmara.

[3] Isto é principalmente evidente na primeira metade do romance.

[4] A figura de Blimunda não interessa directamente ao nosso tema, mas observe-se que o facto de ser aparentemente estéril é muito cómodo para os fins de Saramago. Se o casal criasse família, seria obrigado a uma inserção muito maior no tecido sócio-religioso do tempo e não ficaria mais naquele jeito de amor e uma cabana.

[5] Editorial Verbo, 2ª ed., vol. V, pp. 272-273.



2.3 – O P.e Bartolomeu de Gusmão



O Pe. Bartolomeu de Gusmão é também um tema maior do Memorial do Convento; mas devia-se distinguir entre o P.e Bartolomeu de Gusmão e o Pe. Bartolomeu de Saramago, tão diferentes e distantes são as duas realidades.

As breves biografias disponíveis sobre ele nem sempre são muito concordes. Ainda assim, parece que podemos assentar nalguns pontos, como:

  • Intelectualmente, era um sobredotado;
  • Foi um sacerdote exemplar[1];
  • A Passarola só existiu num desenho, foi uma mistificação sua e nada tem a ver com as experiências com que intentou criar um objecto voador de transporte (veja-se abaixo);
  • Essas experiências foram feitas perante a Corte e não às escondidas da Inquisição;
  • Verosimilmente, nunca foi perseguido pela Inquisição.

Dizer que ele descria de todo o Catolicismo, que recuara a judeu, a herege… parece apenas uma enormidade saramaguiana.

A geringonça descrita por Saramago só voa porque o autor do romance assim o afirma ("era uma vez..."). Na realidade, só um turbilhão de ventos ciclónicos poderia levantar aquilo, mas então ninguém tinha mais mão nela. A seguir ela estatelar-se-ia ou no Tejo, ou sobre a cidade, ou noutro lugar qualquer.




Pedido dirigido pelo P.e Bartolomeu de Gusmão a D. João V, num latim difícil, para obter um alvará para uma invenção sua: “uma máquina na qual se voará com mais velocidade pelo ar que por terra”. No opúsculo de Vicomte de Faria vem a sua tradução para francês.


A mistificação da Passarola

“As primeiras ilustrações da Passarola haviam sido na verdade elaboradas pelo filho primogénito do 3º Marquês de Fontes, D. Joaquim Francisco de Sá Almeida e Menezes, com a conivência de Bartolomeu. O futuro 8º Conde de Penaguião contava 14 anos em 1709 e era, então, aluno de matemática do padre, sendo a única pessoa à qual ele permitia livre acesso ao recinto em que o engenho voador era guardado. Como o rapaz vivesse assediado por curiosos, que constantemente lhe faziam indagações acerca da invenção, resolveu ele, para parar de ser importunado, elaborar o exótico desenho da Passarola, em que tudo era propositadamente falseado. E para preservar o verdadeiro princípio da invenção – o Princípio de Arquimedes –, atribuiu a ascensão da engenhoca ao magnetismo, então a resposta para quase todos os mistérios científicos. Esperava dessa maneira melhor proteger o segredo confiado à sua guarda e ainda ludibriar os bisbilhoteiros. Comunicou o plano a Bartolomeu, que o aprovou, e fingiu deixar o desenho escapar por descuido. A Passarola, inspirada ao que parece na fauna fabulosa de algumas lendas do Brasil, foi rapidamente copiada pelos primeiros que a apanharam, logo se espalhando pela Europa em várias versões, para grande riso dos dois embusteiros.




A Passarola

Toda essa trama seria descoberta anos depois por um autor italiano, Pier Jacopo Martello [1625 – 1727], e revelada por ele na edição póstuma do livro Versi e prose de 1729, em que fazia um longo e meticuloso histórico das tentativas do homem para voar, das mais antigas às mais recentes daquele tempo”. Wikipédia




[1] Temos de descontar a sua deslealdade final para com D. João V, instigada talvez pelo príncipe Francisco.



2.2 – A Inquisição, a forca e o Marquês de Pombal



Às vezes ouve-se falar do Memorial do Convento com um entusiasmo tal que parece que o seu autor denuncia ali o Arquipélago de Gulag que os seus amigos soviéticos criaram; mas de facto denuncia apenas uma instituição mais que defunta, acabada um século antes de ele nascer.

A Inquisição manteve-se activa durante cerca de três séculos e instaurou processos a algumas dezenas de milhares de pessoas. Quantas?

As respostas são variadas e vão de umas vinte e poucos mil até cerca de quarenta e cinco mil.

Mas a pergunta seguinte é: em quantos destes processos foram os respectivos réus entregues ao braço secular, para execução capital?

Também aqui os números variam, de entre uns mil e duzentos até um pouco mais que dois mil.







Belíssima estátua de Santa Clara. Aquando da encomenda exigia-se que o mármore fosse o mais perfeito e de facto é.




Poderíamos assentar em que essas mortes terão implicado 500 condenações por século, o que não estará muito longe da verdade.

Este número, ao lado do das mortes provocadas pelas ditaduras da esquerda[1], da nazi ou da fascista e doutras, no século XX, parece insignificante.

Ao tempo da Inquisição, os tribunais civis também condenavam à pena capital, por recurso à forca (sabe-se onde ficavam muitas forcas) ou outros meios. Como esses tribunais eram muitos (mais de 800[2]), caso eles tivessem condenado em média um réu por século, o número total das suas condenações já ultrapassaria de longe o das condenações à morte atribuíveis[3] à Inquisição.

Como não é possível contabilizar hoje os mortos pela forca, também não é possível contabilizar as mortes provocadas pelo Marquês de Pombal. Mas, nos quase 30 anos do seu governo, deve ter feito matar quase tantas pessoas como a Inquisição em três séculos. E pelos vistos fazia-o com uma crueldade maior[4].

Vejam-se estes números transcritos da História Concisa de Portugal de Hermano José Saraiva[5]:

“Quando Pombal abandonou o poder foram libertados oitocentos presos políticos, mas o número dos que entretanto tinham morrido nos cárceres atingia os dois mil e quatrocentos”.

Isto já dá uma média de oitocentas mortes por década.

Sobre a Inquisição, convém também dizer que, visto que ela organizava processos, podemos hoje saber quem foi morto e as razões da sua condenação[6]. Creio que isso não se passa com o Marquês nem com os mortos das ditaduras do séc. XX. Se da Inquisição não houvesse processos, que saberíamos dela? E das suas vítimas?



 A galilé da basílica é soberba nas suas linhas de inspiração clássica e na policromia dos mármores.


Do que parece não haver dúvida é que o autor do Memorial do Convento, por preconceito, agrava as culpas da Inquisição tanto quanto isso lhe parece viável. Mas em muitos casos não convence: ele descontextualiza quase completamente a instituição e as suas práticas e por vezes não hesita em colorir o que descreve mesmo contra o dado histórico.

Verdadeiramente as lágrimas que chora sobre os mortos dos autos-de-fé são lágrimas de crocodilo, se não quisermos ser mais decididos e afirmar que ele age de má-fé.

Veja-se adiante o anexo sobre os números da Inquisição.

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[1] Segundo o livro de Jon Halliday Mao: a História Desconhecida, o fundador da República Popular da China, para obter a bomba atómica, aceitava deixar morrer metade da população do país… 500 milhões de pessoas. O regime cubano, em cerca de 50 anos, matou lá para 17 mil. Etc., etc.

[2] A da Póvoa de Varzim ficava próxima do farol de Regufe, a de Vila do Conde próxima da Igreja da Lapa.

[3]Cfr. http://pt.wikipedia.org/wiki/Categoria:Antigos_munic%C3%ADpios_de_Portugal.

[4] Atribuíveis, pois a ordem de matar era prerrogativa do Rei.

[5] São vulgarmente conhecidos os casos dos Távoras e o do P.e Malagrida, mas houve outros em que essa crueldade ficou bem manifesta. Aos condenados implicados no célebre atentado contra o Rei “esmagaram-lhes à martelada os ossos dos braços e das pernas e depois queimaram-nos vivos” (SARAIVA, Hermano José, História Concisa de Portugal, 2.ª ed., Mem Martins, 1978, pág. 245.

[6] Pág. 245.

[7] Também convém dizer que desde a sua instituição não houve mais nada que nem de longe se assemelhasse à matança popular de judeus, de 1506, durante a qual em três dias foram mortos lá para dois mil, certamente à paulada e à pedrada: http://arlindo-correia.com/020108.html.



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